MUSEU DO CARRO DE BOI – QUIM COSTA – SÃO BENTO DO SAPUCAÍ SP
20 de julho de 2022Depois de 6 anos, voltei ao local onde filmei com seu Quim a sua última entrevista. O local foi transformado num museu que nos foi apresentado pela filha do fazedor de carros de boi, a Bernadete. O museu oferece visitas guiadas e também um generoso café com quitutes da roça. As visitas podem ser agendadas pelo telefone 012 99762 2966.
A trilha sonora deste video foi gentilmente cedida pelo Dener Dias que tem um canal no YouTube.
https://www.youtube.com/user/diasdener
Há 6 anos fiz o video com seu Quim e escrevi o texto abaixo na descrição…
Aqui o link
Como uma pérola incrustada numa ostra, vive seu Joaquim Costa escondido nas faldas da Serra da Mantiqueira. Imagine um velho de 83 anos, os olhinhos bem acesos, travesso e jovial como um moleque que acabou de descobrir a liberdade. Pois esse é o homem que encontrei hoje de manhã em sua oficina, em São Bento do Sapucaí SP, contente da vida, inebriado com sua cachaça, o fazer artesanal de carros de boi.
Seu Quim vive sozinho, é viúvo duas vezes e sente muita falta das duas esposas que se foram, mesmo com todo o amor que lhe dedica a filha Luzia, sua vizinha, que cuida muito bem da casa e do estômago do pai.
Desde criança seu Quim se interessou por mexer com a madeira e foi aprendendo de curioso com um vizinho, a arte de construir esse intrincado objeto de arte que é o carro de boi. Nunca mais largou. Hoje tem uma oficina montada, totalmente em função das centenas de peças diferentes que compõem um carro de boi. Gosta de trabalhar sozinho, pois, segundo ele, ajudante dá muito trabalho. Mesmo os paus mais pesados ele levanta sozinho, com ajuda de alavancas e carrinhos adaptados para esta finalidade.
“De primeiro”, seu Quim ia na mata cortar os jacarandás, as taiúvas, os paus-de-óleo e as pereiras que usava para fazer seus carros de bois. Hoje já não se pode mais derrubar essa madeira e ele ou compra madeira do norte, ou usa a madeira caída naturalmente nas matas ao redor.
Paciente e didático, seu Quim me mostra cada ferramenta e explica para que servem. Há goivas curvas, trados de diversas medidas, serrotes pequenos e grandes, macetes de todos os tamanhos e pesos, a maioria construídos por ele mesmo, para moldar precisa e artesanalmente, as peças dos carros que constrói para vender. Os clientes são pessoas que encomendam para enfeitar o jardim do sítio como peça de decoração, já que hoje, pelo menos aqui na nossa região, o trator já desbancou faz tempo o carro de bois.
Seu Quim fez apenas um discípulo, um rapaz de Paraisópolis, que hoje vive de fazer carros de bois. Diz ele que hoje a juventude não quer saber dessas coisas. Ele aprendeu pela “precisão”, num tempo em que o carro de bois era o caminhão da roça. Hoje tá tudo facilitado pelo progresso, quem vai se dar o trabalho de montar um quebra cabeças que não tem praticamente demanda?
Seu Quim sabe que não pode parar, que é o trabalho que lhe dá a saúde e a alegria de viver. Quem capina o entorno da casa é ele mesmo e hoje, ao invés de derrubar árvores, ele está é plantando as madeiras boas de se fazer carros de bois, segundo ele, uma maneira de compensar o “estrago” que fez no passado. Na sua opinião, essa lei devia ter vindo há muito tempo, antes da mata se acabar…
Seu Quim tem uma saúde de ferro, diz ele que só foi ao médico por insistência das filhas, que por ele não carecia. O que disse o doutor depois do checkup? Que ele está em forma, melhor que muito jovem e preparadíssimo para a terceira esposa!
Post scriptum (no dia seguinte)
Ontem, depois da visita ao seu Quim, ao passarmos pela porteira do sítio, eu vinha comentando com minha esposa e um amigo, que uma pessoa como seu Quim não podia parar. E que se parasse, ou adoecia ou morria. Nessa hora eu imaginei e falei para eles que seu Quim teria uma morte como a que eu planejo para mim, uma passagem tranqüila, sem dramas e grandes despedidas. Uma morte de quem se deu conta que venceu o prazo de validade e resolve partir sereno para a vida eterna.
Pois foi o que aconteceu hoje à tarde com seu Quim, cujo corpo encontraram sentado no sofá da sala.
Eu não vi nem me disseram, mas posso imaginar um sorriso em seu rosto e tenho certeza de que ele escolheu morrer assim, com a sensação do dever cumprido.
Parece até que ele esperou nossa visita, que estava programada desde meados do ano passado e por sorte aconteceu ontem, um dia antes de sua partida. Guardo dele não somente a lembrança de um homem de fibra, totalmente dedicado a exercer o dom que Deus lhe deu, mas também dois pedacinhos de madeira muito cheirosos que ele nos presenteou; uma rodelinha de sassafrás e uma lasca de pereira, com os quais minha esposa quer fazer um perfume.
Agradeço ao Criador o privilégio de tê-lo conhecido pessoalmente, pois estão cada vez mais raros os mestres que, como seu Quim, largaram cedo os bancos escolares e foram aprender as lições da vida diretamente com a Mãe Natureza.
Que Deus o tenha.